sábado, 11 de setembro de 2010

Protagonistas - Victor Ariel Camília




Victor Ariel Camília - As Origens


       AS ÚLTIMAS LÁGRIMAS
      Era manhã. Mal surgira a aurora, e num quarto no subúrbio de Richada, o cheiro de sangue e carne queimada contaminava o ambiente. Pela pequena janela – uma abertura de trinta centímetros quadrados numa das paredes – a luz do recém-nascido sol incidia sobre o pequeno quarto. Um colchão ao chão, uma cadeira velha de um lado e duas velas apagadas – que ainda liberavam fumaça -- do outro. Eram os únicos objetos na sala.
      O cheiro de carnificina vinha de uma linda jovem, sentada em posição fetal no colchão. Tinha a face suja de sangue, respirava ofegante, e entre a fenda labial percebia-se que lhe faltavam dois dentes inferiores. Seus pulsos estavam cauterizados com marcas de mãos. Seu corpo inteiro tremia. Alguns músculos já manifestavam câimbras. Ao seu lado, na cadeira, estava sentado um homem, tinha trinta anos, mas aparentava quarenta. Em suas rugas estavam estampados conturbados dias de quem não descansava a mente há muito tempo. Cabelos descuidados lhe caiam nos ombros, porém a barba havia sido feita recentemente. Tinha roupas simples, leves e azuis. Possuía anéis em todos os dedos, e em suas mãos descansava uma pequena boneca de louça.
      -- Sabe – o homem falava em tom sincero – eu passei a lhe amar perdidamente, quando naquela segunda semana do nosso namoro, você cuspiu em minha face dizendo que não sentia mais nada...
      Faz uma breve pausa e um amuado sorriso tenta aparecer em seu rosto. Ele continua.
      -- Aquilo foi cruel. Mas dali pra frente, cada momento ao seu lado me fazia imortal. E você não sabe quantas batalhas essa imortalidade me fez resistir.
      O sorriso que lutava por um lugar entre as feições pesadas de ressentimentos desaparece. Uma lágrima corre o rosto do pobre homem e sua mão estoura em chamas na face da linda garota, marcando seu pálido semblante e arrancando-lhe mais dois dentes. Era o golpe derradeiro. A garota desabara sem vida por cima das velas. Seus olhos estavam entreabertos. E os seus cabelos encharcados de sangue cobriam parcialmente sua face também ensangüentada e lavada de lágrimas. 
       O EPISÓDIO DA PEQUENA ADAGA DE MARFIM

       Um garoto assistia a tudo. Estava agora diante da porta aberta, seu nome era Ariel Camília, filho do homem e da recém-falecida. Amava seu pai ainda mais que sua mãe. Era filho único, tinha dez anos de idade e não lembrava um dia em que o pai não lhe tenha beijado a face. Pela manhã enquanto Larissa coordenava os empregados, Miguel ia com o filho brincar com as crianças da vizinhança. Por vezes ficavam a manhã inteira a correr entre gritos e gargalhadas. Quase todas as brincadeiras eram inspiradas nas maluquices do adulto brincalhão. Eis aí uma daquelas situações curiosas da vida. Miguel Camília era uma homem sisudo, muitas vidas estavam em suas mãos, coordenava a guilda mais influente de Richada, nada acontecia no setor noroeste da grande cidade que ele não soubesse. E naquele momento, brincando, parecia vulnerável, tão criança quanto às outras. Amava seu filho.
       E agora, no quarto, quando Miguel se deu conta que estava sendo observado, era inútil, o garoto num ímpeto supremo, avança. Seus olhos embebidos de lágrimas, os dentes cerrados quase a trincar-se, e tudo o que antes era amor, naquele momento se convertia em ódio. Segurava em sua mão uma adaga de marfim que seu pai forjara e o presenteara a dias passados. Num único golpe Ariel tenta acertar o ventre paterno, mas o homem o segura e pede para que se acalme; sem sucesso. Até que num golpe de reflexo lança o garoto para longe. A adaga presa às mãos de Ariel, no movimento brusco acaba rasgando o seu próprio pescoço, um corte que ia de logo abaixo da orelha esquerda até o pomo de adão.
       Miguel salta em direção ao garoto e ocupasse em pressionar o ferimento enquanto, entre lágrimas, berra desesperado pelo seu “braço direito”, Salindo. O homem chega à porta imediatamente e assustado com a cena dá um passo a frente e pergunta:
      -- Imperador! O que está acontecendo?! – existiam para o povo de Richada dois imperadores, Cloud Veylor na corte e Miguel Camília no submundo, o poder deste começava onde o daquele terminava, ao que um não cabia ao outro se remetia. 
      -- Sem perguntas homem! Chame logo um clérigo e depois limpe este quarto!
      Ariel, insano, impotente, flertava violentamente o pai.

      DOCE E FRÁGIL
      Passaram duas semanas. O imperador Camília e sua família continuavam refugiados em algum lugar nos subúrbios de Richada. Miguel era amado e idolatrado por todos de sua região, até nisso competia com Veylor – é claro sem intenções diretas. A morte de Larissa Camília havia sido abafada. Nada poderia comprometer o posicionamento do homem. Até mesmo o clérigo para curar Ariel não foi possível, mas felizmente os ladinos possuíam bons pergaminhos. 
      Pai e filho não trocaram uma palavra nestas últimas semanas. Ariel estava transtornado, muito quieto. Além de todos os acontecimentos tinha de ficar enterrado naquele lugar úmido, abafado, escuro. Já passara por momentos de guerra entre guildas antes, e em todos teve de ficar escondido, mas nem um foi tão repudiado por ele, como este. Pelo contrário, das vezes passadas até gostava. Seus pais se amavam, e nesses momentos se aproximavam ainda mais, os três, uma família feliz. 
      Larissa tinha vinte e sete anos, era uma mulher doce e frágil, porém quando necessário, era uma rocha. Miguel era ocupado demais com seus negócios, de tal forma que a casa ficava sob os cuidados dela. Ali não havia imperador Veylor nem Camília. Os empregados mal lembravam que existiam outros soberanos além de dona Larissa – como a chamavam. À noite, depois de tudo encaminhado, ela tornava àquela doce e frágil mulher. Entrava no quarto do filho, deitava-se ao lado dele e abraçava-o até cochilar. E logo depois Miguel a resgatava e a levava para cama. Eram assim todos os dias. Depois, o casal prolongava o dia por mais uma hora fazendo amor com a mesma disposição e sentimento qual fora da vez primeira, há oito anos passados. 
      Larissa era uma mulher linda, tinha cintura fina, curvas perfeitas, um belo quadril, glúteos arredondados e os seios fartos, sem chegar ao exagero. Nem mesmo trabalhando em seu momento mais tresloucado, perdia aquela aura sensual. Cabelos castanho-claros levemente encaracolados, olhos verdes tão translúcidos que se podia pensar que eram feitos de água, tingida e solidificada. A sua pele era clara, sem ser pálida, lisa, sem qualquer imperfeição. Guardava um pequeno sinal na ponta superior da orelha esquerda. Quase imperceptível de longe, mas quando observado dava-a ainda mais um motivo para ser admirada. Larissa era uma dessas obras-primas que Valkaria espalha pelo mundo. 
      
       O INSTINTO DA PROLE
       Deve estar perguntando-se o leitor: E qual o sentimento do filho pela mãe?
       É claro, Ariel era filho homem, tinha muito em comum com o seu pai, e desta forma acabava inclinando-se para as coisas paternas. Se tivesse num dia, de escolher sair com o pai ou a mãe, não hesitaria em apontar o pai. Mas por mera questão prática. Qual filho homem optaria por assistir à mãe fazendo os serviços caseiros?
      Isso, porém, não significava que não a amava. E o primeiro argumento para tal, eis que Ariel nunca deixou de receber carinho da mãe. Sempre que ela estava por perto, o garoto sentia a sua benção, ou por meio de beijos e abraços ou quando emanada de longe, através de um olhar zeloso. E o segundo argumento: A criatura sempre sabe que saiu do ventre materno, seja criança ou adulto, do sexo masculino ou feminino, e daí já resulta extrema relação amorosa; é o instinto da prole, mantêm-se o vínculo por nove meses e nunca mais se perde – salvo exceções.
      
       A QUARTA GUERRA
      A segunda facção de maior poder no submundo de Richada era comandada por Damna Sumura, um ex-comandante ninja desgarrado do lendário exército de William Morgam. Cantam os bardos que William, após saber do motim planejado pelo comandante, investiu num golpe letal contra o mesmo, mas no último segundo, teve misericórdia arrancando-lhe apenas parte da orelha direita. Em seguida expulsou-o junto de seus adeptos, mas não sem antes selar todos com a marca da traição. A mesma marca que hoje representa a guilda; a cascavel com o chocalho amputado.
      Damna fundara sua guilda há dez anos passados, quando chegara à Richada. Era a mais nova e fraca, porém logo tomou espaço entre as outras. Os homens do ex-comandante eram astutos, perigosos e leais. E esta última virtude, foi a chave do sucesso. A lealdade era essencial a tudo o que se tratava no submundo. Ali, as leis oficiais não penetravam, as regras eram ditadas pelos próprios homens da região -- em geral, os grandes chefes. 
      Em menos de dois anos, a facção Sumura já era absoluta ao lado da poderosa família Camília. Eis que começa a quarta guerra entre guildas, a luta pela hegemonia no submundo. O caos tomava as ruas. O toque de recolher adiantava-se. Por dia, computavam-se dezenas de baixas. A guarda oficial não se intrometia, limitava-se apenas a cuidar para que a questão não se alastrasse a domínios indesejáveis. No mais, só poderia haver um grande chefe. A guerra; era um mal necessário.
      Miguel Camília conhecia Richada como a palma de sua mão. Nascera e crescera no local, em meio as mais adversas circunstâncias. Sabia como ninguém, todas as questões burocráticas da grande cidade. Tinha todos os influentes como moedas em seu bolso. Era assim no período real de Richada e continuou sendo no período imperial. Dizem, que logo após a posse do Imperador Veylor, Duque Camília foi convidado oficialmente a um jantar com o novo soberano; uma atitude conveniente e inteligente a qualquer um que assuma o governo da grande cidade – oficialmente Miguel tinha o título de duque
      A guerra durou seis meses. O suficiente para que Miguel soubesse exatamente a quem remeter-se. Assassinou todos os chefes das guildas aliadas a Sumura, desestabilizando suas conjunturas. Depois contatou os grandes políticos e charlatões da cidade para uma reunião secreta. E em menos de uma semana, todos os alicerces que davam estrutura ao ex-comandante, passaram a inexistir. Damna esfria, e a guerra chega ao fim. Percebera o mestre ninja, porque seu rival era tido como o imperador do submundo. Aprendera a lição.
       
       O CÓDIGO DE HONRA
      Sumura encontrava-se no presente momento em seu esconderijo para tempos de guerra. Numa pequena sala, ajoelhado sobre uma almofada azul, tinha sua espada embainhada, posta sobre as coxas. Quatro tochas presas nas paredes tinham as chamas acesas. Eram chamas brandas que bruxuleavam de tal forma a desenhar sombras inquietas na face do homem. Nada mais havia na sala. 
      A porta se abre. É um de seus homens pedindo-lhe permissão para trazer-lhe um assunto de plena importância. O comandante faz-lhe um discreto sinal com a cabeça e o homem entra.
       O soldado põe-se disciplinadamente no centro da sala e faz uma reverência. Depois, começa a falar eufórico. 
      -- Comandante Sumura! 
      -- Acalme-se meu rapaz. Temos tempo. – retruca pacientemente o mestre
      -- Certo. Quero lhe dizer que, sabemos como chegar ao Camília. – o homem espera
      -- Prossiga. – ainda muito calmo, continuava Sumura
      -- Veja mestre. Com seus próprios olhos.
      O subordinado dá um passo à direita, saindo da direção que ligava a porta dum lado ao mestre Sumura do outro. É quando surge o jovem Ariel Camília.
      O comandante põe-se imediatamente de pé, a indignação toma-lhe o semblante. 
      -- Quem, sem minha ordem, tomou a liberdade de seqüestrá-lo?! Acima de tudo desonrando o código!
      -- Vim por vontade própria. – adiantou-se o garoto
      O comandante Sumura dá dois passos a frente. Era um humano fisicamente excepcional, possuía dois metros e meio de altura, portador de uma suntuosa massa muscular. Pele branca, olhos puxados, sobrancelha e cabelos raspados.
      -- Garoto. Explique-se! – toda sua calma havia sido abalada
      O rapaz olhava fixamente nos olhos do grande homem. O tamanho não o amedrontava.
      -- Eu vim, porque Miguel Camília não presta. Ele deve morrer! 
      Com dificuldades para esconder seu assombro, o mestre ninja estaca por alguns segundos a observar o garoto. Quando finalmente fala.
      -- Ninguém presta nessa vida pequeno homem. Agora diga-me, o que leva um filho a planejar a morte do próprio pai?
      Um breve silêncio.
       -- Ódio. O mesmo motivo que leva o homem a assassinar a mulher amada.
      Era um garoto esperto, embora tivesse apenas dez anos. 
      Mas costumam dizer que a madureza do homem é medida pela intensidade e diversidade do que vive e não pelo número de aniversários. E neste sentido, Ariel estava muito aquém de seus colegas.
      Damna deixa o olhar fixo no garoto por um tempo, convencendo-se que já vira diversos rostos daquele durante sua vida, sabia que a vontade do garoto não mudaria.
       O enorme homem dá meia volta, retorna à sua almofada e ajoelha-se como dantes.
       -- Aproxime-se pequeno Camília. – agora restabelecera o estado de espírito inicial
      O garoto veio. Posicionou-se de pés juntos e braços estendidos apontados para o chão. Estava a três passos do homem. O olhar ainda fixo e desafiador.
      -- Ouça jovem Camília. Não serei eu que o desviarei de suas vontades. Tão pouco serei eu que julgarei seus motivos. Entenda apenas que terei de mandá-lo de volta, pois os assuntos que tenho com seu pai, são apenas negócios. Ainda que nestes esteja incluso o assassinato do próprio. Se eu aceitar sua ajuda, estarei tornando as coisas pessoais. Toda a situação ficaria envolta de sentimentos, e sentimentos não devem envolver negócios.
       -- Se você não aceitar minha ajuda, outros aceitarão e terão todo o poder da família e com certeza lhe darão muito trabalho. 
      Sumura permanece em silêncio.
      -- Você aceita ou não? – continua o garoto como quem tratasse da execução do mais pífio sujeito que encontra pela rua. Qualquer que não tivesse convivido por mais de algumas semanas. Quem tivesse tomado a conversa no dado momento não adivinharia que ele tratava do próprio pai 
      O mestre já tinha a resposta, porém continuava em silêncio, a fitar o garoto. Já vivera sessenta anos e ainda pensava o quão surpreendentes continuavam os sentimentos dos homens.
      -- Garoto. Você herdou os piores traços de seu pai... Ouça. Terei trabalho com ou sem a presença dele.          Portanto, minha decisão consistirá apenas em ser honrado ou desonrado. Escolho a primeira, e espero que a tome como exemplo em seu futuro, distante ou próximo, que seja.
      Lembro-me agora. Sessenta anos. Era exatamente o motivo por qual o general Morgan lhe poupara a vida. Sábio homem.
       Continua...

Um comentário:

Unknown disse...

Vamos ver a saga de Ariel... Será que haverá um novo imperador do submundo? Ou ele falhará miseravelmente? Só o tempo dirá ;D